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Ricardo Gondim

Ricardo Gondim

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Eu, bordadeira
Ricardo Gondim

Quando escrevo encarno o espírito das bordadeiras. Minha pena é agulha que fere o papel para transformar toda a consternação em beleza. Quando eu era criança, sofri por ter nascido canhoto. “Menino desastrado”, ouvi um sem número de vezes. Amedrontado, fugia; eu só queria desenhar. Hoje, bordo, talho, desenho, com palavras. Palavras que podem até revelar o quão desajeitado sempre fui, e ainda sou, mas que me salvam da autocomiseração.

A insignificância que me rondou na adolescência enfeita a minha prosa. A falta de coordenação que não me deixava dançar, dá ritmo aos meus dedos. Com o passar dos anos, substitui timidez juvenil por essa sanha de escrever. Quando me ponho a escrever, arranco lirismo da tristeza e contorno as fronteiras da lucidez para enfeitiçar o texto.

Já não estranho a solitude. Acolho a quietude outonal - já que inaugurei a última metade dos cinquenta. Caio de amores pelo anoitecer. Quando des-iludido, não deixo de encantar-me com a alvorada que anuncia o sempre novo.

Todos os dias, trombo com levas de anônimos. Porém, nunca esqueço que cada um sussurra o nome de alguém que ama. Nós nos distinguimos no meio da multidão porque nos lembramos que, em algum lugar, alguém também sussurra o nosso nome.

Não temo a morte, mas ela me angustia. Ansioso, procuro adiar o dia em que vou ter que me despedir do cheiro do meu travesseiro, dos pensamentos acelerados que roubam o meu sono, da vermelhidão apetitosa da siriguela, da saudade que tenho dos meus pais, da água quente do chuveiro em dia frio, do sorriso de meus netos. Não, não estou preparado para enfrentar o corredor estreito que me roubará o derradeiro fôlego.

Fatigado, confesso a minha humanidade, mas o meu cansaço não significa desistência. Vivo perenemente grávido do futuro. Sinto-me sempre perto de parir sonhos, ideias, divagações. Animado pela luta, só falo da estafa como denúncia. Mesmo quando grito, "não aguento mais", a minha alma continua encharcada de eternidades – assim mesmo, no plural.

Encaro as minhas inadequações sob o teto da graça. Não me dissolvo em falsas culpas. Nunca vou ser rejeitado por enfrentar-me. Prossigo não por teimosia, mas constrangido pelo amor. Amor, que muitas vezes tem gosto de cocada, cheiro de alfazema ou quentura de lágrima. Certamente, bondade e misericórdia me acompanham.

Continuarei bordando tapetes para que outros pisem, esta é minha sina.

Soli Deo Gloria
02-06-10

                                                                         InocenteInocenteInocente

Carta aos (já) velhos amigos
Ricardo Gondim

Se pudesse, nenhum de vocês morreria antes mim. Quero lhes preceder no último passeio não por heroísmo, mas por pura covardia. Tenho medo da dor de perdê-los. Padeço como viúva quando digo adeus a um amigo. Por meses, não valho nada. E sei que não tenho forças para enfrentar meses de desconsolo.

Vinicius de Moraes chamava Cecília Meireles de suave amiga, e assim eu os tenho, meus suaves amigos.

Devo a vocês as poucas cores que sobram em meu coração castanho de decepções. Só escapo de cambalear pelo mundo com a alma mumificada porque vocês nunca me deixaram em paz. De cada um, veio a iniciativa para a conversa; conversa de ferro afiando ferro. Se uma tênue réstia de esperança insiste em brilhar em mim é devido à justeza de caráter que vocês revelaram em momentos descontraídos. Continuo a acreditar que nesse mundão cruel e desumano ainda existem pelo menos sete mil nobres.

Suaves amigos, herdei de nossos encontros, o mínimo de sanidade que me poupa de ser um trapista casamurro. Há muito, eu teria evaporado em devaneios absurdos. Ensimesmado e auto-referenciado, encarnaria o demônio; demônio feroz, daqueles que espumam e se rebentam no asfalto. Na companhia de meus suaves amigos, mesmo homem-joão-da-silva, viro poeta-manancial e profeta-fragrância. Desnudo as fantasias; entre vocês não preciso ser outro senão euzinho, sem nenhuma pretensão. Juntos em nossas fábulas, somos vilões; em nossas parábolas, pródigos ou pais sofridos; em nossos poemas, amantes esquecidos; em nossas piadas, bufões atrapalhados.

O tempo passa. A maresia do kronos, que tudo corrói, também enferruja os elos das grandes amizades. Vigiemos para que essa inexorabilidade nunca nos impeça de cruzar caminhos. Não deixemos que encontros só aconteçam nas tragédias, nos corredores dos hospitais ou no constrangimento do luto.

Carecemos da mesa posta. Arranjemos desculpa para conversas longas, daquelas que se estendem até a boquinha da noite. Por enquanto, a palavra saudade não deve ser pronunciada entre nós. Breve nos perderemos uns dos outros - a morte é desalmada. Chegará a noite escura para nos afastar em longos abismos. Nossos rostos se dispersarão no ruço que encobre a velhice.

Preciso de cicerones, gente que me dê a mão, na última etapa desta breve existência. “Vigiem comigo, nem que seja por uma hora”. Não me abandonem a vagar, arquejado e sorumbático, até evaporar-me. Peço-lhes o regaço como travesseiro; estou disposto a repousar a cabeça até na pedra para sonhar com a escada que toca o céu.

Surpreendamo-nos! Que não seja necessário a ameaça de um meteoro, a iminência de um câncer ou a descoberta de Atlântida para que peguemos o telefone: “Eu só liguei para dizer que você é especial para mim”. Não adiemos para a eternidade as palavras que deveríamos ter coragem de dizer agora. Não esperemos para nos presentear com coroas de flores.

Quando penso em dar brados pentecostais com glórias a Deus, lembro que posso sussurrar: “Eu te amo meu amigo”, e Deus ficará satisfeito.

Soli Deo Gloria
20-05-10

                                                                             InocenteInocenteInocente

Véspera
Ricardo Gondim

Sobrevivente. Acho uma boa palavra para expresssar como espero o dia de amanhã, meu aniversário. Minha vida não foi marcada por grandes tragédias. Não me considero vítima de nada. Embora filho de preso político e embora temperado no gosto amargo do preconceito e da discriminação, não reclamo da sorte. Não me sinto traído pela vida mesmo quando assaltado pela lembrança de já ter caminhado pela alamenda de um cemitério e, aos prantos, enterrar a irmã caçula. Considero-me um sobrevivente. Subsisti à minha impenitente vilania, ao clima inóspito de nossa casa de frente para o sol, ao Liceu, aos fuzis dogmáticos, às taquicardias. E se feridas existenciais ainda supuram, nesta véspera de aniversário reúno coragem de dizer como doem. Estou velho demais para brincar de esconde-esconde.

Desembarco nos 57 anos mal resolvido nas relações. Ainda desespero com deserções. Agonizo com o descaso. Fico arrasado com a superficialidade do companheirismo. Admito culpa no processo: gostei de ser vitrine, aceitei adulação, deixei-me levar por admiradores duvidosos. Custei a perceber o assédio da empáfia e paguei caro. O eureka aconteceu depois de julgado, estapeado e demonizado por aqueles que me abraçavam.

Daí em diante, sem querer, comecei a duvidar da própria sombra. Somei, dividi, apliquei raiz quadrada, mas o resultado aritmético de como passei a perceber amizades, aproximou-se do mínimo. Hoje, nenhuma traição me surpreende. Considero normal os Brutus, os Judas e os Joaquim Silvério dos Reis. Nasci no tempo dos relacionamentos líquidos e não consegui adaptar-me.

No dia 14 de janeiro, abro a porta para o futuro e, junto, arrasto a mala da desilusão. As coxias eclesiásticas não me fizeram bem. O olhar piedoso de homens com colarinho clerical arrasa comigo. Os bem articulados profetas que, em nome de Deus, se mostram descontroladamente pios, me assustam. Intuo o fermento dos fariseus. Calado, acumulei decepções que acabaram alfinetando a bolha onde eu fazia flutuar os ideais. Minha afoiteza juvenil se evaporou. Dobrei as bandeiras de antigas paixões logo que notei conveniências ditando convicções, oportunismos animando iniciativas e politicagens dominando intentos.

Acerco-me da terceira idade e faço tudo para não perder a alma. Como não pretendo amofinar-me em jeremiadas lamentosas, ajusto o dial na sintonia que alimenta poetas de beleza, migro para o mundo dos grandes romancistas para multiplicar o tempo, matriculo-me na alfabetização do jazz, recupero reminiscências infantis, estudo os Atos dos Apóstolos, refaço os passos de Martin Luther King Jr, corro, abraço os netos, acolho o amor de minha mulher, telefono para o amigo distante e passo chave para transformar o quarto em catedral e o pé da cama, em altar.

Encaro os poucos anos que me restam no esforço de ser cândido nas dores, despretensioso na alegria, íntegro diante do espelho e em paz com Deus. Encho as mãos com as sementes da beirada de campos nunca joeirados, e caminho. Não sei se terei forças de espalhá-las por muito tempo, mas estou determinado a ir até o fim.

Sigo devagar, abraçado à Graça, mais liberto de expectativas e com menos imperativos. Ancorado na certeza de que sou amado, me construo. Projeto gastar os próximos anos em aproximar-me de mim mesmo.

Soli Deo Gloria
13-1-11

                                                                            InocenteInocenteInocente

Em busca de mim mesmo
Ricardo Gondim

Desde que me entendo por gente, já se passaram muitos séculos, parece.

Eu disquei em telefones de baquelite preta; aprendi datilografia repetindo "asdfg" mais de um milhão de vezes; voei em avião movido a hélice e sem pressurização; cantei os jingles de "quem bebe Grapette repete"; acompanhei a desastrosa Copa de 1966 pelo rádio; estudei em escola pública; fui patrulhado por um infiltrado da ditadura, meu professor de Organização Social e Política Brasileira, o famigerado OSPB, porque escrevi "proletário" em um trabalho de conclusão de curso. 

Decididamente não venho deste século. Jurássico, canto com Louis Armstrong: "I hear babies cry, I watch them grow /They'll learn much more than I'll never know".

Depois de tudo, tudo, continuo a perguntar: "Quem sou eu"? Perplexo, não sei delinear a moldura que me distingue dos outros.

Sou um universo de subjetividades;

a mistura dos sons, paladares e cores de minha terra natal;

o tamborilar de chuva em telha de barro, que ressoa desde um quarto antiquíssimo;

a memória sobrevivente de ancestrais defuntos;

o aroma da velha cozinha onde vovó fazia vatapá;

a  ruptura de desejos pueris;

o assistente de tragédias sem reposta;

a sintaxe imprecisa de um idioma que se fez minha pátria;

a sede do transcendente que reluz em meus olhos de menino inquieto;

a encarnação do medo perene de rejeição;

o anseio carente de um colo acolhedor;

a negação de fracassos prenunciados;

a vertebração de perseverar como dever;

o profeta da força avassaladora da impotência;

o filho que alterna o terno e o insensível;

o pêndulo que oscila da melancolia para a euforia; 

o covarde que se revela audaz; 

o corajoso que claudica;

o cético pleno de fé;

o santo que se sabe reles.

 

Soli Deo Gloria

20-08-10

                                                               InocenteInocenteInocente

Não me empurrem, por favor
Ricardo Gondm

Não tolero multidões. Não gosto de empurra-empurra. Sou de fácil convivência, mas não aceito me ver constrangido a fazer o que não quero. Sou dobrável, mas eu viro cavalo xucro quando noto que estão tentando encabrestar-me.

Suplico, não me empurrem para heroísmos vazios de significado. Recuso calçar coturnos que me deixariam com o garbo dos vencedores. Por mais que implore, alguns insistem, e não se conformam que eu não queira encarar certos desafios. Na fábula, a raposa desprezou as uvas que não conseguiu alcançar. Eu, todavia, desprezo as uvas que já comi. Testemunhei as vaidades de quem se sentia “usado por Deus” e vi que os “ungidos” viviam inebriados por seus discursos; mal conseguiam pisar o chão sujo, comum aos mortais. Mas, olhando para trás, os “usados por Deus” não passavam de celebridades bem acostumadas com palcos.

Suplico, não me empurrem para rinhas teológicas. Não aceito provocações. De nada adianta chamar-me de herético, apóstata, desviado. Quando era menino, briguei todas as vezes que mexeram com a mamãe. Mas passei dessa fase. Noto que alguns têm uma vontade doida de ganhar fama às minhas custas. Ainda dolorido com a sorte de centenas de milhares que morreram no Tsunami asiático, cai na esparrela de replicar a alguém que criticou o que escrevi. Acabei dando notoriedade aos argumentos de um fundamentalista, que subitamente ganhou notoriedade. Nunca mais deixarei que me façam de escada para que discursos assépticos fiquem conhecidos.

Suplico, não me empurrem para ambientes que desprezo. Não tentem me convencer que alguns eventos são precisos para o avanço do Reino de Deus. Não pretendo validar conceitos que estão embutidos em congressos que tentam consolidar dogmatismos toscos. Não vou a simpósios ideologicamente submissos a patrocinadores ricos. Quero pensar e me sentir livre para dizer o que penso. Filho de um preso político, sinto asco dos Torquemadas de qualquer estirpe.

Suplico, não me empurrem para longe de quem luta pela vida. Perdi todo o medo de quem não faz parte de meu arraial. Gosto de literatura e nunca pergunto a filiação religiosa dos grandes romancistas. Li “O Velho e o Mar” de Hemingway, “A Pérola” de Steinbeck, “Fogo Morto” de José Lins do Rego, “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Crime e Castigo” de Dostoievski e nunca perguntei se eram crentes, ateus, ou agnósticos. A cravo de Mozart, o pincel de Van Gogh, o cinzel de Michelangelo, os passos de Gandhi, as preces de Madre Teresa e a militância de Martin Luther King estão acima dos minguados catecismos do movimento evangélico.

Careço de leveza para caminhar, minha sina é pesada. Sentado à mesa para escrever, quero espaço para os cotovelos. Já não tão jovem, não posso jogar tempo pela janela com sufocos e encontrões. Naturalmente introspectivo, sofro com os constragimentos de quem gosta de guiar manadas. Por isso, insisto em minha súplica: não me empurrem, por favor.

Soli Deo Gloria
14-06-10

                                                                              InocenteInocenteInocente

Penitências redentoras
Ricardo Gondim

Pela remissão de minhas imensas culpas, prometo:

Ao zapear, jamais ficar mais que três segundos em programas evangélicos, Faustão, Gugu, Big Brother, novela, Amaury Jr., Luciana Gimenez e outra dúzia de emburrecedores.

Na Copa, não ouvir o Galvão Bueno em hipótese alguma.

Nunca, nunquinha, folhear uma revista Veja.

Riscar de meu vocabulário palavras boçais como progenitor, necrópole, alcantil.

Tentar gostar de rock pauleira.

Me esforçar para não chamar sãopaulino de bambi.

Me manter virgem, sem ouvir ou assistir nada, durante a propaganda política gratuita do rádio e da televisão.

Banir Miojo de minha dieta para sempre.

Não rir de um outdoor em Guarulhos que faz propaganda de roupa “moda evangélica”.

Nunca passar da primeira linha nos e-mails de gente que me escreve com afronta e desaforo.

Ser bonzinho.

Escovar os dentes depois das refeições.

Não pedir para Deus abrir o trânsito da Marginal porque preciso chegar no aeroporto dentro de meia hora, e noto que vou levar pelo menos duas horas.

Soli Deo Gloria
22-05-10

                                                                                                          InocenteInocenteInocente

Carta aos (já) velhos amigos
Ricardo Gondim

Se pudesse, nenhum de vocês morreria antes mim. Quero lhes preceder no último passeio não por heroísmo, mas por pura covardia. Tenho medo da dor de perdê-los. Padeço como viúva quando digo adeus a um amigo. Por meses, não valho nada. E sei que não tenho forças para enfrentar meses de desconsolo.

Vinicius de Moraes chamava Cecília Meireles de suave amiga, e assim eu os tenho, meus suaves amigos.

Devo a vocês as poucas cores que sobram em meu coração castanho de decepções. Só escapo de cambalear pelo mundo com a alma mumificada porque vocês nunca me deixaram em paz. De cada um, veio a iniciativa para a conversa; conversa de ferro afiando ferro. Se uma tênue réstia de esperança insiste em brilhar em mim é devido à justeza de caráter que vocês revelaram em momentos descontraídos. Continuo a acreditar que nesse mundão cruel e desumano ainda existem pelo menos sete mil nobres.

Suaves amigos, herdei de nossos encontros, o mínimo de sanidade que me poupa de ser um trapista casamurro. Há muito, eu teria evaporado em devaneios absurdos. Ensimesmado e auto-referenciado, encarnaria o demônio; demônio feroz, daqueles que espumam e se rebentam no asfalto. Na companhia de meus suaves amigos, mesmo homem-joão-da-silva, viro poeta-manancial e profeta-fragrância. Desnudo as fantasias; entre vocês não preciso ser outro senão euzinho, sem nenhuma pretensão. Juntos em nossas fábulas, somos vilões; em nossas parábolas, pródigos ou pais sofridos; em nossos poemas, amantes esquecidos; em nossas piadas, bufões atrapalhados.

O tempo passa. A maresia do kronos, que tudo corrói, também enferruja os elos das grandes amizades. Vigiemos para que essa inexorabilidade nunca nos impeça de cruzar caminhos. Não deixemos que encontros só aconteçam nas tragédias, nos corredores dos hospitais ou no constrangimento do luto.

Carecemos da mesa posta. Arranjemos desculpa para conversas longas, daquelas que se estendem até a boquinha da noite. Por enquanto, a palavra saudade não deve ser pronunciada entre nós. Breve nos perderemos uns dos outros - a morte é desalmada. Chegará a noite escura para nos afastar em longos abismos. Nossos rostos se dispersarão no ruço que encobre a velhice.

Preciso de cicerones, gente que me dê a mão, na última etapa desta breve existência. “Vigiem comigo, nem que seja por uma hora”. Não me abandonem a vagar, arquejado e sorumbático, até evaporar-me. Peço-lhes o regaço como travesseiro; estou disposto a repousar a cabeça até na pedra para sonhar com a escada que toca o céu.

Surpreendamo-nos! Que não seja necessário a ameaça de um meteoro, a iminência de um câncer ou a descoberta de Atlântida para que peguemos o telefone: “Eu só liguei para dizer que você é especial para mim”. Não adiemos para a eternidade as palavras que deveríamos ter coragem de dizer agora. Não esperemos para nos presentear com coroas de flores.

Quando penso em dar brados pentecostais com glórias a Deus, lembro que posso sussurrar: “Eu te amo meu amigo”, e Deus ficará satisfeito.

Soli Deo Gloria
20-05-10

                                                                                InocenteInocenteInocente

Segundo fôlego
Ricardo Gondim

No jargão dos maratonistas, segundo fôlego acontece depois de um certo tempo de corrida. Nas primeiras passadas, o organismo queima açucar, fonte de energia menos calórica e a gente se sente cansado. Depois, passa a queimar gordura, combustível de melhor qualidade. Nesse câmbio da glicose para a gordura, o corredor se sente bem disposto, com mais ânimo, renovado. Nos meus primeiros anos de vida eu consumi glicose, a energia fácil, que me dava furor empreendedor, mas que fatigou.

Agora estou queimando os estoques de tecido adiposo; um jeito mais lento de gastar-me. Começo a experimentar outra qualidade de vida. Sinto-me revigorado; acho que entrei no estágio do segundo fôlego.

Segundo fôlego, porque ando entusiasmado com a minha crescente identificação com a Missão Integral. Missão Integral para mim é compromisso de alcançar homens e mulheres em todas as suas necessidades, considerando as realidades onde estiverem. Encorajado por teólogos católicos e protestantes que souberam responder ao clamor dos pobres na América Latina, procuro traduzir a mensagem do Evangelho em praxis transformadora, em ação libertadora, em promotora de justiça. Estou envolvido com Missão Integral que não prioriza a salvação de almas, mas busca a salvação de vidas.

Segundo fôlego, porque respiro uma nova liberdade. Puiram as rédeas que me impediam de desgustar cultura. Falsas percepções de pecado perderam força de me deixarem assustado com arte, literatura, música, teatro. Não me percebo indigno por gostar de amenidades que moralismos vitorianos proibem; já não preciso me esconder quando quero ir ao cinema. Quem nunca sofreu o torniquete do tradicionalismo legalista da religião, não imagina como é bom sentar em um teatro e assistir aos textos de Brecht, Shakespeare ou Andrew Lloyd Webber.

Segundo fôlego, porque sou abençoado. Deus me agraciou com gente especial; gente que se importa. Estou rodeado de mulheres e homens que aprenderam a Lingua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para fazerem parceria com surdos; de casais que se colocaram em listas de candidatos para adoção; de voluntários que lutam pela recuperação de alcoólicos e drogaditos; de idosos que se doam a idosos em sanatórios; de profissionais que se dedicam em diversas iniciativas sociais.

Segundo fôlego, porque mudei minha biblioteca. Entusiasmado, devoro pensadores judeus, católicos, ortodoxos, ateus, agnósticos. A grade de minhas leituras transborda o Index sutilmente imposto por austeros defensores da Reta Doutrina. Transitar entre tantos autores não só ajuda a cumprir a recomendação paulina de analisar tudo e reter o que for bom, como alarga a minha capacidade de ser criterioso com o que eu outrora aceitava ingenuamente.

Segundo fôlego, porque a minha vida de oração ganhou cores diferentes. Deixei de sofrer ajoelhado para mendigar respostas às minhas petições. Minha espiritualidade era trabalhosa. Eu mastigava as palavras para demonstrar para Deus a minha penitência e assim alcançar o seu favor. Quantas vezes desesperei por não entender o porquê de não ser atendido nas súplicas mais urgentes. Nas horas críticas, era terrível ainda ter que lidar com culpa. O ídolo que por muitos anos chamei de Deus foi destronado. Já não preciso provar a minha fé com resultados. A Graça devolveu-me uma relação de paz com Deus. Finalmente entendi que “no silêncio e na quietude” encontrarei salvação. Aprendi o sentido do Salmo 46:10: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”.

Segundo fôlego, porque me tornei um Caleb – o herói bíblico que se sentia um menino com 85 anos. Ele ansiava por conquistar um pedaço da Terra Prometida. Rejuvenecido, vou escrever, pregar, ensinar, discipular, com as forças que moveram aquele rapaz parecido comigo a dizer sim ao chamado de Deus.

Soli Deo Gloria
6-4-10

                                                                           InocenteInocenteInocente

Antesala
Ricardo Gondim

Revejo fotos do meu pai e tento comparar-me ao homem preservado ali. Faço paralelo com fisionomias e miro em seus olhos o tempo em que tinha a idade que estou hoje. Fiquei perecido com ele. O que meu velho pensava sobre satisfação? Quais angústias o assombravam nas madrugadas? O que meditava ao escanhoar o pescoço? Como encarava a morte?

Eu já disse adeus a muitos amigos. Gente que reverenciei se antecipou para entregar o óbulo ao balseiro de Creontes. Pronuncio os meses soletrando cada vogal com vagar. Sei que é inútil tentar atrasar ponteiros. O arrastar das horas sulcou a minha carne para semear a semente do desencanto. O tempo fustigou os meus olhos com as dores do mundo. Mas mesmo assim, contundido como um Jacó manco, aceito o convite para a festa da velhice.

Claudicante e hesitante, pressinto o epílogo que encerrará a trama de minha existência. Ouvi dizer que as dores do velho são pungentes porque nunca machucam aviltosamente. Aprendi que o sono dos velhos é curto; vou ter saudade da adolescência; eu dormia em excesso e como era delicioso acordar na hora do almoço.

Sei que a memória dos idosos se aguça, fica nítida com fatos antigos. Espero que sim. Preciso esquecer a torpeza humana desses últimos anos. Fui pungado de horas e horas quando poderia dedicar-me ao belo. Uma amnésiazinha básica cairá bem para distanciar-me de religiosos nefastos que tentaram infectar a minha alma com vingança. Felicíssimo, recordarei detalhes sobre a amizade que tive com o Roberto, o Titão, o Elmar, o Martagão, o Antônio José,o Junior. Vou rir muito.

Faltam poucos anos – Deus me conceda vida! – para eu desabafar um monte de ideias, doidices, heresias, reflexões e percepções que só os velhinhos têm direito. Os avós são livres para falar asneiras sem temerem o tacão inclemente dos críticos. Protegidos por cãs brancas, eles divagam sobre beleza, ternura e bondade com outra largueza. Anseio pela singeleza dos vovôs que contam histórias, narram casos e fantasiam mundos irreais. Como deve ser bom não precisar conquistar o mundo.

Ultimamente ando assim, nostálgico. A morte súbita do Allison chagou o meu coração. Ainda penso que vou telefonar e indicar o próximo livro que ele deve ler; Como é duro não tê-lo por perto para conversarmos sobre poesia. De repente, a morte deixou de ser um perigo improvável. Ele me esbofeteou e avisou: “Cuide-se, eu também rondo a sua casa”.

Não tenho medo dessa bruxa encapuzada. Não tento enganar a mim mesmo imaginando que sou inalcançável. Não passo de flama de “um círio em uma catedral em ruínas”; mas estou disposto a arder até o fim, celebrando cada instante como se fosse o último.

Soli Deo Gloria
30-03-10

                                                                           InocenteInocenteInocente

Não morri pela primeira vez
Ricardo Gondim

A estrada de minha vida foi doce e adstringente em proporções iguais. Ri e chorei, ousei e apanhei com igual intensidade. Amei e odiei como todos os vis mortais. Não ouso reclamar dos afogamentos, dos desgostos, dos embotamentos. Sou vítima e verdugo, infectuoso e réu. Contudo, na metade dos meus cinquenta anos, baqueei.

As decepções se agigantaram no peito e o coração bateu sem ritmo – e, parece, ele nunca mais baterá igual; desilusões que nasceram, muito provavelmente, de olhos idealistas. Não, nunca fui ingênuo. Eu percebia as gambiarras institucionais; enxergava os olhares furtivos de monacais que sagazmente azeitam a máquina eclesiástica como meio de vida; notava as lógicas internas de um edifício doutrinário que não se sustenta diante da imensa tragédia humana. Mas, entusiasmado com minha própria potencialidade, insisti nos quixotismos. Eu não queria ver o mal que me rodeava. Meus olhos se fixavam nas conquistas – Conquistar o quê, meu Deus, se eu próprio não passava de um tolo que nunca se dominou?

As dores se sedimentaram e eu acabei no leito de um hospital. No intento de fazer o bem, ganhei inimigos. No esforço de ser relevante, fiz-me antipático. Descobri que a popularidade cobra um preço alto. Aprendi que o zelo pelo bem termina em patíbulo. Como um bicho selvagem que não se dobra diante do chicote, nunca me acostumei às pedradas. Sofro horrores com a saraivada dos infames. Minha carne vira combustível volátil na fagulha inclemente da mentira.

No leito, sem acesso à abóboda celestial, tomei certas decisões. Na absoluta depuração de ouvir os passos da Senhora da Foice, rabisquei nas tábuas do espírito: "Não sairei daqui o mesmo". Minhas resoluções não precisam significar nada; elas são minhas, apenas minhas.

Decido distanciar-me completa e totalmente de qualquer debate doutrinário. Não preciso provar coisa alguma. Sem medo, vou caminhar sem carecer de bitolas. Teimoso, eu voltava a desafiar críticos. Mas agora me dou por vencido. Resignado, viro o lado esquerdo da cara para os Curadores da Reta Doutrina. Que eles fiquem com o báculo da ortodoxia. Que se refestelem com a enormidade de suas descobertas espirituais. Sinto que devo marinar a alma com temperos exóticos. Prefiro aprender com prostitutas – elas me precederão no Reino. Às vezes penso em gritar, mas já é tão tarde, meu Deus!

Decido abrir mão de buscar granjear seguidores. Meu caminhar não será comprometido por lisonjas – Quanto mais lisonjeados, mais dificultados de encarar o futuro!

Decido pactuar com quem não teme molduras, não pensa a partir de rótulos e não faz varredura no universo sagrado, que é a alma do próximo. Os purgativos que se encontrem na roda dos puros. Quero mergulhar a cabeça na poesia dos que a moralidade puritana considera insalubre. Não evitarei a genialidade dos maculados pelo crivo provinciano dos novos Torquemadas.

Decido dedicar-me à literatura. Ainda hei de escrever; mas não para salvar o mundo. Acredito que a pena do destro escritor tem o poder de resgatar a mim mesmo enquanto padeço. Insubstancial, vou tentar entender a força do verbo que se faz carne. Rei de mundos quiméricos, não vou necessitar proteger as costas de vampiros emocionais.

Renasço. Sem afetação, engatinho aos cinquenta e seis. Decido enfrentar a nova puberdade em melhores condições, espero. A proverbial energia dos adolescentes me encorajará na fascinante tarefa de me fazer humano na velhice. Peço tão somente que não me prendam em cercaduras, o horizonte teme os meus olhos e eu não cesso de persegui-lo.

Soli Deo Gloria

                                                                                   InocenteInocenteInocente

Vida rara
Ricardo Gondim

Meu rosto, marcado com sulcos, mostra a erosão dos vendavais que varreram antigos e inconsequentes sonhos. Calos, que outrora protegeram as minhas mãos, agora doem. Estradas íngremes, que nunca evitei, racharam os meus calcanhares.

Meu olhar se aquieta. Desisti das euforias pueris. Despedi censores internos; eles tonsuravam minha pouca criatividade. Lentamente procurei tangenciar mundos que jamais cogitara explorar. Aprendi a soletrar novos alfabetos, a solfejar novas músicas, a recitar novos sonetos. Espero. Meu coração desacelerou.

Minha prece mudou. Já não procuro atalhos. Não imploro por salvamentos, não prenuncio livramentos, não ambiciono privilégios. A miséria desmedida que mata milhões de crianças me deixa insone. Fico com enxaqueca ao pensar na infância roubada, agredida e mutilada dos africanos, latino-americanos, palestinos e asiáticos. Por que, meu Deus, vivem como porcos?

Meu futuro encurta e o passado, alonga. Converto pressa em urgência. As afobações impetuosas cederam para as urgências planejadas. Otimizo o tempo. Encareço o instante. Vou passar, por isso canto com o Lenine: “Enquanto o tempo/Acelera e pede pressa/Eu me recuso faço hora/Vou na valsa/A vida é tão rara...”.

Soli Deo Gloria

                                                                                                         InocenteInocenteInocente

Saber viver
Ricardo Gondim

Envelheço. Aos poucos vou me tornando antigo. Os cabelos alvejam, a pele afina, o olhar acalma. Sou noviço, mas quero ser o melhor aprendiz de uma nova fase de vida; fase em que as despedidas são numerosas e os encontros espaçam. Quando as saudades ganham força e as nostalgias, frequência.

Aprendo a encarar limites. Não me atrevo a algumas peripécias: subir em prancha de skate, brigar no trânsito, viajar pedindo carona, tomar banho de praia sem bloqueador solar, querer ser político.

Aprendo a ter calma. Conto os anos e percebo que na grande crise ambiental de 2060, não estarei por aqui. Mas não me afobo. Domei os ímpetos, reavaliei as empreitadas juvenis, agora vou sem pressa. Obrigo o relógio da alma a caminhar com lentidão. Destrincho os compromissos, sacudo as agendas e sacralizo o ócio. Presenteio-me com a irresponsabilidade. Consciente, procrastino.

Aprendo a ser sensível. No passado, engolia o choro, disfarçava a tristeza, fugia da melancolia. Fiz as pazes com as lágrimas. Falo sozinho. Aconselho-me com os botões. Esmurro o volante do automóvel, fecho as janelas e xingo. Soluço prantos sem lágrimas. Aprecio a liberdade de vertebrar angústias. Ajoelho-me aos pés da cama e silencio o sofrimento.

Aprendo a calar. Não retruco. Desprezo o direito de ter razão. Atrai-me brincar com argumentos. Só penso em poetizar lógicas. Desejo realçar a beleza. Apaixonado pela delicadeza do violino, apiedo-me de quem imagina conhecer toda a verdade. Música suave, na penumbra de uma sexta-feira chuvosa, me encanta – mais que palestra sobre como alcançar sucesso.

Aprendo a sorver o pólen da vida; a mergulhar em cavernas rochosas onde me escondia de mim mesmo; a acordar vagaroso para não espantar os sonhos que povoaram o sono, e me presentearam com viagens por mundos impossíveis.

Envelheço e não acho tão ruim; por enquanto, pelo menos.

Soli Deo Gloria

                                                                                                          InocenteInocenteInocente

Descobertas
Ricardo Gondim

Descobri que tenho pés de barro. Há algum tempo, achava-me imbatível. Em minha suficiência, imaginei que sendo fiel a Deus, nenhum mal me alcançaria. Desafiei a vida. Realmente acreditei que as asas do Todo-Poderoso se abririam sobre mim e nada ou ninguém atravessaria aquela blindagem emplumada para me ferir. Em nome da fé, dei o melhor, certo que seria um sucesso. Frequentei todos os seminários para aprender “princípios universais para uma vida triunfante". Pensei que a existência se engrenava numa perfeita relação de causa e efeito.

Descobri que não sou onipotente, apenas um peregrino inadequado e efêmero. Achei que conseguiria controlar as variáveis do dia-a-dia com eficiência. Considerei a pedagogia que aprendi no seminário a mais eficiente para educar filhos. Disciplinei com “vara” – me instruíram que a Bíblia mandava bater. Trabalhei de domingo a domingo; eu esperava receber o devido galardão dos meus esforços. Ensinei as pessoas a semearem; tratava os resultados dessa "lei" como líquidos e certos. Afirmei que a salvação da alma acontece quando se acredita em doutrinas aprovadas pelos legítimos cânones da tradição pietista-reformada-pentecostal.

Descobri que não sei tudo. Tolamente, rebati “heresias” com argumentos incontestáveis. Promovi seminários para destruir raciocínios “apóstatas” (mal sabia que o bumerangue voltaria para me acertar o rosto). Quando me levantei para falar, estava tão convencido que era o dono da verdade que ensurdeci para as manifestações de bondade que me assediavam. Soberbo, gritei a pleno pulmão a minha certeza. De dedo em riste, fiz de minha interpretação a única verdade possível.

Descobri que não sou cidadão do mundo. Respirei o ar asfixiado do bairrismo. Dourei o meu gueto. Restringi a leitura. Fui treinado a não gostar de quem não era “salvo” – só que muitas vezes os “salvos” que eu me forçava para gostar, não passavam de pessoas mesquinhas, traiçoeiras e banais. Por volta dos quarenta anos, conheci gente mais feliz, mais íntegra, mais honesta, que muitos “santos”. Passei a olhar a vida por prismas nunca considerados. Engatinhei na meia idade.

Devido a tanta soberba, quebrei a cara, feri pessoas, paguei mico, chorei. Frustrei-me. Neurotizei amigos. Só agora reconheço que a vida não segue sobre trilhos. As lógicas religiosas não funcionam. Abaixei a crista.

Entendo que não sou mais um adolescente. Mas não desespero. Há tempo, não sei quanto, mas pretendo eternizar o instante precioso. Quero sorver a vida sem as inclemências que amordaçaram meus sorrisos. Anseio por doçura. Tenho sede de bondade. Busco a grandeza de quem ainda sabe rir e chorar.

Soli Deo Gloria

                                                                                                        InocenteInocenteInocente

Sem jeito
Ricardo Gondim

Não tem jeito. Sou feliz e nostálgico. Curto cada instante. Gosto de perceber imperceptibilidades. Amo as entrelinhas do texto, as sutilezas do olhar e do sorriso. Mas lido mal com as saudades. Não me conformo com o galope do tempo, que some com os meus queridos. Perder dói demais. Não suporto álbuns. Revejo fotografias, antigos sorrisos, a saúde inabalável dos que estavam vivos e sei, vou passar o dia acabrunhado. Há lugares que agulham o meu coração.

Não tem jeito. Sou desembaraçado e introvertido. Enfrento os espaços públicos com desenvoltura. Sei falar com uma multidão. Debulho argumentos com a oratória. Comunico e ilustro. Minha dicção é razoável. Disfarço o sotaque. Também transito com certa facilidade em espaços privados. Entro e saio de pequenas reuniões com traquejo. Travo, porém, nos ambientes íntimos. Nutro a sensação de que certos segredos da alma devem acompanhar-me ao túmulo. Gaguejo quando preciso explicar o porquê de alguma atitude. Hesito em abrir os porões da alma.

Não tem jeito. Sou quieto e nervoso. Gosto de ficar em casa, do cheiro do meu travesseiro, de ver a noite engolir o dia, de dias chuvosos, de silêncio. Por outro lado, inquieto-me com pensamentos enlatados. Adoro a tensão das idéias. Discuto com as veias do pescoço. Quero perguntar, seguir adiante com inquietações. Permitir que a navalha da dúvida corte qualquer crença absolutizada por minha preguiça. Gosto de anarquistas, livres pensadores, poetas, trovadores e escritores, que trucidam o texto com metáforas arrasadoras.

Não tem jeito. Sou esperto e ingênuo. Sou vidente para perceber maldade. Mas acredito na amizade de quem jura companheirismo. Tenho intuição feminina para notar hipocrisia. Mas acho que todos os meus conhecidos são leais. Noto lágrimas forçadas. Mas não me protejo do estilete de quem imaginava querido.

Não tem jeito. Sou corajoso e covarde. Ouso e depois tremo. Arrojo e depois lamento. Escrevo e depois choro. Às vezes escrevo coisas que deveria manter escondidas. Para manter o sucesso prematuro, que me fez conhecido de caciques religiosos, eu deveria me amordaçar. Todavia, sou inconsequente. Aceito, tempestivamente e de peito aberto, o ringue dos debates. Acabo destroçado pelos argutos professores de teologia. Recebo a pecha de herege, tolo e bobo. Ferido, penso em me aposentar. Sumir para um lugar ermo. Mudar de nome e frequentar o clube literário da cidade; simplesmente viver.

Não tem jeito. Sou teimoso e hesitante. Digo: vou continuar com a determinação do jagunço, com persistência da rendeira, com a dureza do jangadeiro. Pouco depois, quero tirar o site do ar. Dizer aos meus muitos críticos que eles têm razão: mereço o fogo mais intenso do inferno; não deveria expor o esforço de ser eu mesmo. Tem horas que penso revidar, espinafrar partir para o ataque. Contudo, sem mais nem menos vem a vontade de pedir a todos que tenham misericórdia de mim; como não posso arvorar-me a nada, condeno-me a ser um eterno aprendiz.

Soli Deo Gloria

                                                                                                     InocenteInocenteInocente

o que são cinco décadas?
Ricardo Gondim

Quando meu pai morreu, chorei sobre seu corpo inerte, destruído por décadas de sofrimento – papai padecia do mal de Alzheimer. Meu primeiro instinto foi analisar os seus olhos, lindos, esverdeados, límpidos como a esmeralda. Agora estavam descoloridos, opacos, fúnebres. Suas pupilas perderam todo o brilho. Baixei as duas pálpebras e um choro trágico arrebentou; eu não conseguia conter dentro do peito o horror daquela hora. A morte é desalmada.

Papai estudou muito. Por anos, trabalhou como um burro de carga. Começava o dia às cinco e meia da manhã para pegar o ônibus lento, que se arrastava sonolento pelas madrugadas mornas de Fortaleza. Lecionava historia nos ginásios da cidade e gastava os domingos corrigindo pilhas de provas. Era meticuloso com a higiene e com a saúde. Alimentava-se bem, dormia cedo e tomava pelo menos três banhos por dia.

Um dia, papai passou a contar a mesma história, a comportar-se inconvenientemente, a ser violento. O diagnóstico com o nome de um alemão desconhecido, selava a sua sorte; e começava com a ruína do homem que eu tanto amava. Um homem bom e leal, com um senso de justiça aguçado. Como foi triste vê-lo destroçar-se aos poucos.

Vez por outra leio poetas que falam da morte, e que já morreram. Penso:  "será que, na época em que escreveram, se angustiavam? Imaginavam como seria o imponderável momento, o último suspiro"? Aquele derradeiro instante quando todos os livros lidos, todas as cidades visitadas, todas as raivas acumuladas, todos os cansaços, todos os beijos e todos as pequenas derrotas, perdem o sentido?

Aliás, qual o sentido da vida? Acertar com um roteiro previamente escrito? Procurar a Verdade? Aquela verdade definitiva que explica o porquê da flor no topo da montanha ou do vulcão submarino que alimenta as bactérias com o enxofre que a terra cospe?

Quando concebemos a vida em décadas, tudo fica muito fugaz. Que são cinco décadas? Tempo suficiente para colocar um adolescente, perigosamente, próximo do extremo risco; naquela faixa em que as companhias de seguro hesitam em calcular os prêmios.

Esgarçamos como punho de camisa. Não passamos de um sono furtivo; o sono dos cansados, que não percebem as longas horas da noite. Somos o conto ligeiro que a mãe lê para os filhos agitados.

Quando completei 40 anos, matriculei-me em um curso de poesia no Museu Lasar Segall. Na primeira aula, o professor indagou porque estávamos ali. Os que tinham a minha idade responderam que finalmente se davam a oportunidade de fazer o que sempre desejaram, mas que nunca haviam encontrado tempo. Significativo. Na meia idade, ao perceberem que a areia da ampulheta se acabava, todos queriam cumprir antigos sonhos.

Penso que o sentido da vida tem a ver com os desejos. A Escritura diz que devemos nos alegrar em Deus e ele satisfará os desejos do nosso coração. É isso! O sentido da vida deve ser cumprir ou abandonar os desejos que carregamos no escaninho da alma. Em minha infância pobre, quando ia à praia, minha única vontade era ter dinheiro para tomar uma Coca-Cola. Posso ter mudado os desejos, mas continuo procurando satisfazer os anseios do meu coração.

Tudo acaba em nada. Toda a ciência adquirida, toda a reputação conquistada, todo o poder demonstrado, tudo vira pó. Fechei o caixão do meu pai e pensei: “um dia farão a mesma coisa comigo”. Não consigo antecipar os meus últimos pensamentos – posso ficar caquético ou perecer subitamente. Enquanto não chegar esse momento fatídico, quero realizar os desejos que povoam o meu coração. Não sei aonde vou chegar, basta-me caminhar um dia de cada vez, sabendo que Deus fica satisfeito quando me vê feliz.

Soli Deo Gloria

                                                                                                         InocenteInocenteInocente

Encaixes
Ricardo Gondim

Por anos, vivi em missão. Eu não ia ao churrasco na casa da minha mãe, mas comparecia a uma cruzada de evangelização; não levava os filhos à praia, mas cumpria com os deveres de pai exemplar; não sentava à mesa para desfrutar da companhia dos amigos, mas testemunhava que os irmãos vivem em comunhão; não viajava de férias, mas aproveitava a conferência para descansar um ou dois dias.

Minhas obrigações eram maior do que a minha alegria de viver. Os imperativos dispunham a minha agenda. Acossado pelo fantasma do dever a cumprir, nunca aprendi a dizer não, engoli os chatos de plantão, corri contra o vento. Sim, corri, corri, sem saber para que lado ia. Passei a maior parte da vida fazendo encaixes, tentando encrustrar os roteiros alheios na minha vida. Fui ator de um filme de quinta categoria, dirigido por uma equipe de diretores sem talento, estrelei em cinemas pulguentos. Decorei textos inexpressivos. Achava que a personagem vivia melhor do que eu.

Não quero encaixar os meu parênteses nos textos que me entregaram para decorar.  Amedrontado, intuí desaprovações infundadas. Desejo arrancar os cabrestos existenciais que eu mesmo coloquei na boca. Se me vi obrigado a sofrer com as minhas inadequações, sinto-me à vontade para despir máscaras e ser eu mesmo.

Por anos, só li o que fosse “útil”. Cada vez que corria a vista em um romance, poesia ou crônica, sentia-me culpado. Quero dar folga aos meus olhos. Vou deixá-los ä vontade para que escolham o que desejarem. Vou despedir o bedel que fiscalizou a minha alma. Não admitirei que os demônios que reinam sobre o legalismo me dominem. Assino a minha própria alforria.

Devo ter alcançado a idade em que já posso me dar ao luxo de desdenhar da fúria quixotesca que encantava a minha juventude. Se vivia a encaixar os meus amigos em minha confusa caderneta de compromisso, agora faço o contrário: vou procurá-los por eles mesmos, sem a preocupação de contabilizar os desdobramentos de nosso encontro. 

Condeno as minhas incumbências a esperarem. Os primeiros lugares do meu coração estão reservados aos meus amigos.

Soli Deo Gloria.

                                                                               InocenteInocenteInocente

Perplexidade
Ricardo Gondim

Tem dias que a alma pesa como chumbo. As palavras, insípidas, perdem a magia. A memória do pesadelo, mais forte que a realidade, perdura com o clarear do dia.

Engulo o riso. Trago a alegria. Deixo que fuligem cubra a minha cama. Não recolho os jornais amarelados, esquecidos na sala de casa. Não lavo os pratos que entopem a pia. Deixo a vida esperar.

Sem inspiração, escrevo platitudes. Sem viço, contento-me em espalhar palavras desordenadas na página vazia.

Em que esquina se esconde o futuro? A quadra que tudo arrasta e tudo corrói, desfigura o sonho da juventude perene. Restam perguntas, as perguntas mais confusas. Sobra angústia, a angústia mãe do desespero.

Condenados ao pó, choramos por eternidade. Cônscios do fim, caçamos o santo Graal. Frágeis, esperamos pelo improvável esquecimento de Kronos.

Meu amigo peleja contra o câncer. Sua perplexidade me esvazia de toda e qualquer inspiração. No limbo do diagnóstico, não consigo arrancar poesia das veias. A aberração da esperança não permite beleza. Resta o dever cru de vê-lo resistir. E quem sabe, dar-lhe um pouco do que sobrou de mim.

Soli Deo Gloria

                                                                              InocenteInocenteInocente

A ameaça do não-ser.
Ricardo

Ainda não atraquei o veleiro no porto da velhice. Despeço-me, porém, da matinê da vida. O meu futuro se encurta; o meu passado se alonga. Percebo o candeeiro de prata escurecer, a aquarela dos olhos desbotar, a fotografia da memória esmaecer. Perder, despedir, distanciar, passam a ser verbos cada vez mais frequentes na minha linguagem.

Encaro o tempo com coragem. O descer da ampulheta não soterra tudo; o escorrer do rio de Heráclito não arrasta tudo; a ira de Cronos não destrói tudo. No processo de envelhecer, cresço.

Com o passar dos anos, aprendi a olhar o reverso dos espelhos; a eternizar os momentos que fogem entre dedos, a chorar sem esconder as lágrimas. Hoje, levo desaforo para casa. Deixo de espernear com os abandonos. Desisto de ser palmatória do mundo. Prefiro o silêncio à badalação. Medito com as montanhas. Acolho as penumbras. Troco a libido dos olhos por palavras.

O escuro não me assusta como dantes. O menos me atrai. Encaro as nuvens negras sem assombro. Ambiento-me em cavernas. Gosto da melancolia poética, da angústia profética, da coragem filosófica.

Esfolio a intolerância da pele. Dever e desejo se confundem em minha alma. Converso com as culpas. Meu querer não nasce da obrigação, só do prazer. Os imperativos não me fustigam. Desfruto do que faço. Ensurdeço para a cobrança de quem grita.

Convivo bem com os antônimos quando se intrometem no meu vocabulário. Ímpeto não desconhece a espera, altivez abre alas para a fragilidade, encanto se acompanha da decepção. Tese e antítese se juntam com facilidade e as sínteses se tornam comuns.

Meu sol despenca no horizonte. O crepúsculo se avizinha. Não hesito em me despedir do que fui. Preparo-me para encarar Deus. “Pois olhar de frente o Deus que na verdade é Deus significa também olhar de frente a ameaça do não-ser” (Tillich).

Soli Deo Gloria.

                                                                               InocenteInocenteInocente

A sina do sinistro
Ricardo Gondim

Desastrado! Descoordenado! Foi assim que cedo aprendi que a minha canhotice era uma deficiência. Alguém me falou que Deus não gosta dos canhotos.

Mais tarde, consultando o Aurélio descobri que a segunda definição para o conhoteiro é inábil, desajeitado, desastrado. Horrorizado, li que algumas sociedades matam as crianças que revelam qualquer tendência para a esquerda.

A esquerda é a vizinha mais próxima da negritude. Se denegrir é diminuir alguém ao nível dos negros, quem escreve com a mão errada é sinistro. Ou seja, de mau agouro, fúnebre, funesto. Os corretores de seguro investigam prejuízos como sinistros. Portanto, os canhotos são quase sinônimo de incêndio, acidente, naufrágio.

Os comunistas estiveram na esquerda. As carteiras do colégio foram fabricadas para os destros. Estes sim, protótipos da habilidade. Destreza é dom e esquerdismo, maldição. A direita é ortodoxa, conservadora, proba. A esquerda, perigosa. Quando Deus separar os bodes das ovelhas, advinha para que lado ele lançará fora os bodes?

Nunca possuí uma caneta tinteiro. Como passo a mão por cima do que acabei de escrever, lambuzo a página. Sou escravo da BIC. 

Mas nós, que fomos marginalizados, nos tornamos uma elite. Googlei “Canhotos famosos” e para minha alegria e redenção me surpreendi:

(http://members.tripod.com/~geniusbr/Avesso/famosos.html).

Quando Barack Obama assinou seu primeiro documento como presidente dos Estados Unidos, enchi o peito. Falei baixinho: "Que bom, mais um para redimir a nossa sina!".

Soli Deo Gloria.

                                                                            InocenteInocenteInocente

O caminho mais fácil
Ricardo Gondim

Seria tão mais fácil calar que expor; dissimular que enfrentar; concordar que questionar. Eu sinceramente prefiro a calma à turbulência; a alienação à contestação; a paz à tensão. Desisto. Não me entendo, não me explico. Sinto um formigão e me lanço afoito ao debate das idéias. Talvez, imagine encontrar magnanimidade, grandeza humana.

Seria tão mais fácil não balançar o barco e navegar em águas tranqüilas (meu corretor não abre mão do trema). Concordo, não se deve corrigir o rei. Admito, não se questiona o que foi posto como absoluto. Reconheço, não se constrange a maioria.

Seria tão mais fácil deslizar para a aposentadoria como uma unanimidade. Melhor deitar na fama do mito. Sim, a arte de forjar uma personagem não exige muito. Representar bem não é complicado. Desempenhar de acordo com as expectativas da multidão vem com poucos ensaios. Os cacoetes grudam na pele e a gente acaba cumprindo qualquer roteiro.

Seria tão mais fácil seguir o caminho já trilhado. Não sei porquê, fui para a contramão. Sem programar, acabei remando rio acima. Fiz escolhas dolorosas. Aliei-me aos marginais. Pousei na periferia. Tropecei na fronteira do pensamento ortodoxo. Espiei por cima do muro do consenso. Acabei exilado.

Tudo era fácil. Agora tenho que explicar-me para quem me quer bem.  Tenho que sofrer com as inquietações de quem me engolia seco. Tenho que lidar com as deserções de quem suspeitava de mim.

Seria tão mais fácil descer a ladeira. Mas eu precisaria rachar por dentro e conviver com um impostor parecido comigo. Não tenho escolha. Obriguei-me a conviver com as minhas dificuldades. Morrerei abraçado comigo mesmo.

Soli Deo Gloria.

                                                                              InocenteInocenteInocente

Agora vou até o fim
Ricardo Gondim

Não sei porque me posicionei contra a invasão de Gaza. Não sou palestino, nunca estive nas áreas bombardeadas e não tenho nenhuma afinidade com qualquer militante do Hamas. Embora reconheça que existam muitos cristãos entre os palestinos, entendo que a maioria é islâmica. Não conheço nada do Corão. Gosto da cultura judaica e Jesus, meu senhor, era judeu.

Então, por que,  meu Deus, eu me revoltei contra a carnificina de 2009? Consolidei a minha reputação de relativista, amigo de liberais e inimigo do “povo escolhido de Deus”. Só falta me rotularem de antisemita (Sem querer me defender, mas para registro: Sou admirador do pensamento judaico e reconheço a tradição pacifista dos teóricos do pensamento semítico).

“Ricardo, você não sabe que o mundo inteiro estará contra Israel? Não sabe que Jesus virá nas nuvens para advogar a causa do seu povo? Não sabe que o mesmo Deus que mandou dizimar cidades inteiras, matando crianças, velhos e animais, agora “limpa” o território de Israel? Não sabe que você corre o risco de ficar ao lado do Anticristo e da Besta Fera?”

Eu, que já estava ferrado, me indispus, completamente, com os evangélicos. Minha reação, diante de todos os arrazoamentos: Jesus de Nazaré jamais aprovaria o que um Estado militarizado e opressor faz com os pobres ridiculamente enjaulados numa tira de terra com quarenta quilômetros de extensão por dez de largura. Cristo não tolerou que os filhos de Boanerges invocassem a casuística bíblica para chover fogo do céu sobre os samaritanos. Não impulsionou a causa dos zelotes, não provocou ódio e não incitou vingança.

O movimento evangélico, em sua grande maioria, interpreta as profecias bíblicas com as lentes do fundamentalismo. Na versão mais comum, o mundo inteiro se revoltará contra os judeus. Liderados pelo Anticristo, os povos vão guerrear contra Israel. Mas Jesus vai voltar para resgatar o seu povo.

Uma pergunta, só uma: Por que as nações se revoltariam contra Israel? Se o Estado de Israel cometer atrocidades, oprimir e massacrar, então eu sou obrigado a me opor a ele. Nenhuma profecia me obriga a aceitar a maldade. Não posso pactuar com projetos meticulosamente programados para humilhar um povo sofrido e injustiçado. Assumi um compromisso com a justiça e não com uma leitura equivocada da profecia. Estou do lado de quem faz o que é louvável e de boa fama, não posso tolerar massacres.

E as profecias? Não sou contra nenhuma profecia, apenas inimigo da interpretação que a teologia fez da profecia. Não sou contra o projeto de Deus, apenas hostil à instrumentalização do seu projeto para beneficiar uma religião ou uma ideologia. Não sou contra a Bíblia, apenas estranho ao cinismo religioso.

Sei que devo ficar calado e curtir as minhas indignações na privacidade. Não consigo! Talvez a minha índole sertaneja me empurre para o lado de gente como Noam Chomski, Jimmy Carter, Norman G. Finkelstein, Naomi Klein e outros liberais, humanistas, relativistas e pósmodernos. Reconheço que sou impetuoso, na maioria das vezes, visceral. Como pentecostal, transbordo emoções.

Não gosto de beliscão. Melhor ficar de bem com a maioria, não me indispor com os poderosos e não cutucar quem ferroa. Levo bordoada e acabo chateado, mas fazer o quê?:

Quando eu nasci veio um anjo safado 
o chato dum querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim. - Chico Buarque.

Soli Deo Gloria